quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

O verdadeiro problema de Hillary com Martin Luther King

Prezados amigos,

antes do texto, publicado originalmente na Carta Maior, gostaria de enfatizar que, para mim, sua importância reside, sobretudo, na descrição de como uma atitude burocrática, embora recheada de boas intenções, pode empobrecer o sistema democrático.
A autora, Barbara Ehrenreich, goza de grande reputação como pesquisadora das classes sociais nos EUA. Esta atividade de pesquisa tem ocupado toda sua vida desde que se infiltrou, usando um disfarce de si mesma, na classe operária que recebe salários de miséria, em seu já clássico Nickel and Dimed [Por quatro centavos], um relatório exaustivo das enormes dificuldades pelas que passam muitos norte-americanos que precisam trabalhar duramente para sair adiante.


O verdadeiro problema de Hillary com Martin Luther King

Os direitos civis dos negros não foram conquistados por homens (ou mulheres) trancados em escritórios. Foram ganhos por um movimento de massas de milhões de pessoas que marcharam, ficaram sentadas, suportaram prisão, tiros e surras pelo direito ao voto e a transitar livremente.

Barbara Ehrenreich

No começo pensei que era outra trapaça branca com a cultura negra e a criatividade: os Rolling Stones apropriando-se do Bo Diddley beat, Bo Derek praticando esporte com o cabelo cheio de trancinhas e agora Hillary, dando crédito a Lyndon Baines Johnson para votar a lei de direitos de 1965. Se essa honra já foi concedida a um branco, LBJ era uma curiosa opção desde que passou toda a convenção democrata de 1964 manobrando para evitar que o Partido Democrata pela Liberdade do Mississippi conseguisse ocupar sequer uma cadeira dos dixiecrats. Segundo os critérios de Clinton, em 1972 deveríamos ter confiado em que Richard Nixon ia legalizar o aborto.

Mas o comentário de Clinton sobre LBJ revela algo ainda mais preocupante do que a surdez racial: uma teoria da mudança social que é tão elitista como incorreta. Os direitos civis dos negros não foram conquistados por homens (ou mulheres) trancados em escritórios. Foram ganhos por um movimento de massas de milhões de pessoas que marcharam, ficaram sentadas, suportaram prisão, tiros e surras pelo direito ao voto e a transitar livremente. Alguns eram estudantes e pastores, muitos eram agricultores pobres e trabalhadores urbanos. Ninguém tentou ainda fazer uma lista com seus nomes. Também é problemático, evidentemente, que se reduza o movimento pelos direitos civis a dois nomes: Martin Luther King Jr. e Rosa Parks. O que aconteceu com Fannie Lou Hammer, que chefiou a delegação do Partido Democrata pela Liberdade do Mississippi na convenção de 1964? E com Ella Baker, Fred Hampton, Stokely Carmichael e centenas de outros líderes?

A teoria da história das grandes personalidades pode simplificar a escrita de livros didáticos, mas não lança luz sobre como a mudança realmente ocorre. Os direitos das mulheres, por exemplo, não foram obtidos por Betty Friedan e Gloria Steinem enquanto elas tomavam chá. Tal como Steinem seria a primeira em reconhecer, o movimento feminista dos anos setenta fincou suas raízes em volta de mesas de cozinha e de cafés, impulsionado por centenas de milhares de mulheres anônimas e fartas de serem chamadas de meu bem no trabalho e de serem excluídas dos trabalhos “de homens”. As estrelas da mídia, como Friedan e Steinem fizeram um brilhante trabalho de proselitismo, mas precisaram de um exército de heroínas anônimas para encenar os protestos, organizar conferências, repartir pasquins e difundir a mensagem para a vizinhança e os colegas de trabalho.

Mudança, este ano, é um grito de guerra democrata, mas se eles não sabem como ocorre a mudança, não estão preparados para promovê-la por si mesmos. Um caso ilustrativo é o plano de “reforma sanitária” de Clinton, de 1993. Ela não fez nenhuma viagem pelo país para ouvir o que as pessoas tinham a dizer a esse respeito, nem teve reuniões televisionadas apresentando comoventes testemunhos locais. Em vez disso, juntou durante meses uma tropa de especialistas e palacianos em reuniões a portas fechadas, algumas rodeadas de tanto segredo que até os próprios participantes foram proibidos de usarem lápis ou caneta. Segundo David Corn, de The Nation, quando Clinton foi informada de que 70% dos americanos pesquisados eram favoráveis a um sistema de pagamento individual, respondeu com sarcasmo: “agora me diga alguma coisa interessante”.

Poderia ter feito as coisas de maneira diferente, de um modo que não deixasse os 47 milhões de americanos sem cobertura sanitária que existem atualmente. Poderia ter começado percebendo que não ocorrerá nenhuma mudança real sem a mobilização das pessoas comuns que querem a mudança. Em vez de seqüestrar a si mesma com economistas e consultores de negócios, poderia ter se reunido com organizações de enfermagem, grupos de médicos, sindicatos de trabalhadores sanitários e advogados de pacientes. E, depois, poderia ter ido até a população e dizer: estou trabalhando por uma mudança séria na forma de fazer as coisas e será necessário vencer duras resistências, ou seja que vou precisar de todas as formas possíveis de apoio.

Mas ela fez do seu jeito e acabou com um plano de 1300 páginas do qual, de um lado e de outro, ninguém gosta e que ninguém sequer compreende, o que demonstra que a mudança histórica não é feita pela garota mais elegante, mesmo que ela divida a cama com o presidente. Da mesma maneira, ignorou o movimento contra a guerra desta década e perdeu, com isso, um incalculável número de votantes democratas, feministas incluídas.

Eu gostaria de pensar que Obama, com sua experiência na organização da sua comunidade e com sua insistência em estimular as pessoas, entende tudo isto um pouco melhor. Mas, seja qual for o presidente eleito este ano, não haverá nenhuma mudança real de cunho progressista sem um movimento social de massas para trazê-la, seja pedindo contas ao presidente ou à presidenta, seja impondo a ele, ou ela, uma verdadeira prova de fogo. E um movimento social não começa na cúpula. Começa exatamente agora, com vocês.

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