segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

NELSON ASCHER, hoje, na Folha.

Perguntar não ofende
Talvez não estejamos tão longe de uma sociedade de certezas indiscutíveis na qual o único crime seja simplesmente perguntar

APESAR de minha índole conciliadora e pacífica, às vezes, para minha surpresa, vejo-me enredado em polêmicas. Há, por exemplo, autores, sobretudo poetas, incapazes de tolerar uma resenha que não seja 100% elogiosa. Uma restriçãozinha aqui ou mesmo uma aprovação insuficientemente enfática ali e, pronto, eles se transformam, embaraçosamente, em exegetas entusiasmados de si mesmos.
É provável que, ao apontar a banalidade de tal ou qual verso, desta ou daquela imagem, o crítico esteja, sem querer, tocando em feridas profundas da alma do poeta ou invadindo os derradeiros redutos de sua auto-estima. Algo semelhante ocorreu quando me envolvi na mais barulhenta de minhas discussões, se bem que, naquela ocasião, os sentimentos que devo ter magoado tenham sido os do público.
Há filmes que, de tão descaradamente manipuladores e demagógicos, tão mecânicos e transparentes na sua má-fé, levam o espectador atento a se sentir a um tempo vítima e cúmplice de uma trapaça. Foi esse o caso de "Sociedade dos Poetas Mortos", a que assisti em 1990. Para agravar meu mal-estar, tão logo os créditos começaram a aparecer na tela, boa parte da platéia aplaudiu de pé aquela abominação. Soube logo que essa reação se tornara demasiado freqüente e, quando meu comentário foi publicado, passei a receber cartas que por pouco não me ameaçavam de morte. Como ninguém, ao que parece, desejava que seu suspeito vínculo emocional com o filme fosse questionado, descrever-lhe o mecanismo soava para muitos como ofensa pessoal.
Ofensa pessoal é a expressão-chave. Há temas em vias de se converterem em tabu, temas intocáveis, porque, quando entram em pauta, qualquer dúvida ou opinião discordante são entendidas como ataque às convicções sinceras e puras dos demais. Fazer ressalvas ao partido que está no poder, por exemplo, equivale a agredir fisicamente seus adeptos ou, no mínimo, a colocar sob suspeita sua razão individual de ser. O mesmo vale seja para o debate sobre as causas da criminalidade e suas possíveis soluções, seja para certas questões seletas de política internacional, seletas, aliás, porque aqueles que se manifestam tão passionalmente a respeito delas seriam incapazes de discorrer, com um mínimo de coerência ou informação, sobre inúmeras outras.
Resumindo, quando se trata de abordar determinados tópicos, há duas e apenas duas espécies de opinião: as corretas e as emitidas por malfeitores. Vale dizer: uma opinião que não se harmonize com a da maioria nunca pode estar somente errada; não há lugar para equívocos. E a criminalidade da opinião em si é o que menos importa, pois, afinal, uma pessoa inocente poderia, por engano, sustentá-la, não? Ocorre que, no âmbito da passionalidade vigente, somente criminosos do pior tipo é que fazem certas perguntas, pensam determinadas coisas, têm determinadas opiniões.
Mas por que tanta raiva em face dessa discordância ou da mera dúvida? A maioria esmagadora não basta? É preciso ter a unanimidade? O mantra dos enfurecidos assegura que tanto os dissidentes como suas opiniões são desconhecidos, irrelevantes, ridículos. Sua alergia, portanto, não pode decorrer do temor. Não seria, a rigor, até conveniente para eles ter alguns inimigos contra os quais pudessem, de quando em quando, exercitar suas armas, reafirmar suas certezas? E não é, ademais, paradoxal que essa gente, tão compreensiva, tão disposta a perdoar crimes de sangue, revele-se tão intolerante diante dos crimes de pensamento?
Sucede que a virulência das reações ou a intensidade da ira dirigida contra os poucos dissidentes tampouco mantêm qualquer relação de proporção nem com influência destes, nem com o alcance do que dizem, ou melhor, questionam. Claro que parte da cólera sagrada não passa de manifestação de ressentimento daqueles que, escravos das posições majoritárias em seus respectivos grupos, sentem-se humilhados por pessoas que, de tão arrogantes, julgam-se livres o bastante para dizer o que quiserem. Deduz-se daí que o que neles incomoda é sua própria existência, uma vez que essa representa a hipótese segundo a qual uma outra opinião é possível.
De acordo com a ordem normal das coisas, as perguntas vêm primeiro, as respostas depois. Quando essa ordem se inverte, a função das respostas passa a ser a de impedir perguntas de emergirem. Talvez não estejamos tão longe assim de uma sociedade de certezas indiscutíveis na qual o pior, ou único, crime seja simplesmente perguntar.

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