Publicada originalmente na extinta revista Primeira Leitura, a entrevista feita por Reinaldo Azevedo com Contardo Calligaris, em abril de 2006, está disponível em seu blog:
http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/
O texto merece ser lido por todos que se interessam pelo papel da moral, seja na atividade política, seja como norte de cada um de nossos atos.
A íntegra em PDF está neste endereço:
http://br.msnusers.com/primeiraleituraed51contardo/files/VISAO%20DE%20MUNDO%E2%80%A251%E2%80%A2layout.pdf
Na seqüência, a abertura da entrevista.
"O psicanalista Contardo Calligaris, italiano de nascimento, andarilho por escolha, é de uma inteligência “alastrante”. Seguem a esta abertura 14 páginas de uma entrevista encantadora por conta do rigor intelectual do entrevistado e, vá lá, da disposição deste interlocutor de se deixar contaminar pelo “Bem”, por aquele que falava e se expressava com toda a singularidade que faz cada um de nós ser o que é. “O Mal”, ele nos diz, “está no coletivo, na renúncia ao foro íntimo.” O indivíduo ainda é a mais eficaz defesa contra a barbárie, o totalitarismo, o vulgaridade. Certa feita, um jovem que se queria marxista, de 14 ou 15 anos, apostrofou o pai, que houvera sido militante antifascista sem ser, no entanto, comunista: “Como podia?”. E o pai, então, lhe deu uma resposta iluminada: “Eu era antifascista porque, no fundo, achava os fascistas tão vulgares!”.
O menino também é pai do homem, como nos ensinou Machado de Assis, ou seu Brás Cubas. Aquelas palavras foram repercutir mais tarde, quando Contardo conheceu Roland Barthes, de quem foi aluno, e percebeu que a estética também pode ser uma ética: “Uma ética do não-dogmatismo, da curiosidade, da capacidade de amar a própria coisa, desde uma história em quadrinhos até Chateaubriand”. E então desandamos a falar da necessidade da arte, de sua função, que não pode ser outra senão “a harmonia interna que produz”. Mas ainda faltava ser mais explícito: “A produção de um objeto cuja finalidade é externa, por exemplo, que é ideológica e declarativa, não é mais uma produção artística. Isso vale tanto para a arte conceitual como para o realismo socialista”.
E, assim, passamos a tarde, numa conversa que propus, e ele topou, fosse dividida em três partes, como em Os Sertões, de Euclides da Cunha: O Homem, A Terra, A Luta. Queria chegar a outros sertões, a outras lutas, menos sangrentas talvez, mas não menos duras. Na primeira parte, falamos desse homem todo-mundo-e-ninguém, gênero neutro, que designa a espécie, e de um outro, ele próprio, o escrutinado da tarde. Na segunda, o ambiente de nossas pelejas, o mundo, este Brasil onde a fraqueza da cultura republicana faz com que um escândalo de grandes proporções ainda seja percebido como coisa quase corriqueira.
Passeamos por autores da urbe e da orbe, tentando contar e recontar histórias, em busca de tempos e oportunidades perdidos. Para poder ver mais adiante. Ou, ao menos, ter instrumentos para tanto.
É nessa parte que estão as lutas mundanas, o conflito de culturas, a marcha da civilização, os instrumentos com que entender e reinventar o mundo, as utopias que matam, os amores que são de salvação. Pensador da cultura, ele jamais se nega ou refuga. Lembro-me de São Paulo na Primeira Epistola aos Coríntios: posso tudo, mas nem tudo me convém. Eis um dos fundamentos, a liberdade, plasmado na civilização ocidental e que é, sim, seu mais precioso valor, pelo qual vale a pena lutar. Falei de Paulo? Contardo considera que as bases do bom individualismo moderno estão dadas pelo cristianismo. A conversão nasce da escolha. Ali se fundava uma idéia de humanidade, que antes não existia.
A terceira parte, A Luta, ficou reservada ao homem no espelho – vamos falar um pouco do narcisismo –, aquele que chega ao divã do analista, “doente por falta de significado e de significação”, como qualquer um de nós, e procura, então, uma narrativa para sua vida, uma história. Que, contada e recontada, vai concorrendo para redefini-lo e levá-lo, então, até a margem do rio. Ao fim da entrevista, talvez estivéssemos ambos felizes – eu estava: um pouco tonto e feliz.
Explico o meu estado. Havia marcado a entrevista para o dia 18 de abril. Fui acometido de uma crise de labirintite. No dia 21, ainda não estava bem, e era o meu prazo-limite. Mas não tinha como sair. O andarilho Calligaris, aceitando, desta feita, um percurso mais curto, dispôs-se a ir até a minha casa, uma doação ao paciente daquela tarde. Mas ele mesmo diz que uma das coisas boas da psicanálise é não “dar presentes”. Fizemos algumas trocas simbólicas – eu saí ganhando, é claro – e tentamos pôr alguma ordem entre o “cosmos sangrento e a alma pura” (ave, Mário Faustino!). Tentamos entender os “hábitos do corpo e da mente” de que fala Tocqueville, que ambos apreciamos tanto.
E eu indaguei, com Hannah Arendt, outro afeto intelectual e moral compartilhado, como é que podemos, então, resistir ao “mal” e manter o “foro íntimo”, a inviolabilidade do indivíduo, morada suprema da liberdade. A resposta se lê páginas adiante. Mesmo longa, muita coisa deixa de ser publicada nesta entrevista. O dia caiu menos “doente de falta de significado e de significação”. Eu o acompanhei, trôpego, até a garagem, voltei, fechei a porta e comentei com a minha mulher: “Ele é de uma inteligência alastrante”.
(...)
É possível falar do caráter de um povo?
Eu fiz isso, todo mundo faz. É uma herança do século 19. É muito forte na cultura brasileira. Desde o fim do século 19, a grande sociologia brasileira não pára de tentar descrever o que é o brasileiro. Eu acho que há povos que se colocam mais essa pergunta do que outros. Essa espécie de autoconsciência coletiva existe se a gente acredita nela. Há povos que crêem nisso de uma maneira automática, espontânea. É o caso dos franceses. Provavelmente porque consideram que têm um patrimônio histórico comum tão longo, que acham que a nação é uma verdadeira comunidade e um destino. E há os que se interrogam. É natural que essa interrogação caiba especialmente nos povos americanos.
Por que os povos das Américas se interrogam mais, com menos certezas?
Em primeiro lugar, estão aqui por causa de um sonho, ainda que herdado do avô, do bisavô. Mas é o sonho de uma vida em outro lugar. A vida em um lugar onde é possível, sei lá, comer ou praticar a religião sem ser perseguido. É um sonho de futuro. O europeu não tem essa questão. O sujeito é francês porque nasceu na França. Nunca houve nesse processo uma escolha ou um desejo. Uma das grandes diferenças subjetivas do ponto de vista clínico é que certamente, nas Américas, o individuo é muito mais interrogado pelo seu futuro do que pelo seu passado.
Isso muda o discurso da psicanálise?
Não vai aqui um juízo de valor. Os europeus, por exemplo, são especialistas em maltratar a psicanálise norte-americana, esquecendo-se de que a gente analisa sujeitos diferentes, culturalmente diferentes. E uma das grandes diferenças é que o maior peso para um norte-americano é o do futuro, da realização de suas potencialidades eventuais.
Não ser, por exemplo, um loser.
Justamente. Ele está ali por causa de um sonho, dele ou herdado, tanto faz. O europeu vive muito em função de uma dívida que ele tem com o passado. O europeu está mais preocupado com o que o passado exige dele do que em inventar um futuro.
É a diferença que há entre administrar uma herança e acumular para deixar uma herança.
Exatamente. Outro ponto importante é que a travessia do Atlântico implicou uma decisão de renovação: é a queima dos barcos. Isso nos remete a um dos problemas contemporâneos se pensarmos em países que ainda recebem levas de imigrantes, como os EUA. Quando se pode manter um contato telefônico ou via Skype com a terra natal; quando, depois de seis meses de trabalho, pode-se comprar uma passagem e voltar para casa durante uma semana – e isso nada tem a ver com a imigração do passado, deixa de haver uma transformação: a transformação subjetiva que era exigida àquele que imigrava até havia 30, 40 anos. O problema da integração do imigrante nos EUA é relativamente novo. O imigrante nunca foi um problema para a sociedade americana, que se fez mesmo da diversidade de culturas. Eu não gosto muito do conceito de nação. As minhas figuras de referência são aqueles intelectuais do começo da Contra-Reforma, que eram católicos, mas que, na verdade, tinham simpatia pela Reforma. Erasmo é a minha figura intelectual.
Então Rabelais também?
Ah, mas absolutamente sim. Giordano Bruno, nem tanto: acho que faltava nele um pino. Ou dois [risos]. Bem, sou fiel a essas figuras. É preciso lembrar que viveram numa época em que o conceito de nação não fazia sentido. Eventualmente havia a nação das letras, que eram as pessoas que se falavam pela Europa afora. Assim, eu tenho uma antipatia muito grande por qualquer expressão nacionalista. Em geral, tenho uma certa repulsa por qualquer expressão de fidelidade ao grupo.
Você endossaria a frase do Samuel Johnson de que o patriotismo é o último refúgio do canalha?
Sem nenhuma dúvida. Qualquer tipo de fidelidade que passa na frente do foro íntimo é, para mim, a definição do mal.
É a destruição do indivíduo.
Exatamente. Porque, quando isso acontece, aí tudo é permitido. No fundo, a única coisa que coloca limites ao horror, para mim, é o foro íntimo. Eu digo que é o mal porque é a definição do mal do século 20, que deu no fascismo, no nazismo, no stalinismo, em Pol Pot.
Há uma demonização do indivíduo hoje em dia.
Ah, completamente! E por conta de um equívoco. Para mim, individualismo é uma palavra nobre. Louis Dumont é um dos meus mentores intelectuais. Acho que ele é um colosso da antropologia do século 20. O individualismo não tem nada a ver com o egoísmo, mas com uma sociedade em que o indivíduo é um valor superior à comunidade. Eu sei que você gosta disso porque, outro dia, fez alusão a esse pensamento naquele encontro, e eu disse para mim mesmo: “Ah, pensamos do mesmo jeito”. Pois bem: nós dois compartilhamos da idéia de que a tendência antiindividualista é muito presente na parte menos interessante do Iluminismo francês, especificamente em Rousseau. O conceito da vontade geral é verdadeiramente uma das raízes ideológicas do que aconteceu de pior no século 20.
Outro dia escrevi um texto dizendo que Rousseau é o pai de todos os autoritarismos. O que eu recebi de porrada foi uma coisa fabulosa!
Mas ele é! O conceito de vontade geral é um perigo ideológico. O lado do Iluminismo francês que me interessa é Montesquieu. Mas, depois disso, o que me interessa é Locke, Smith... Não deixa de ser curioso que o Iluminismo anglo-saxão não tenha feito muito escola. É considerado inferior ao francês. E a realidade é que o francês produziu o Terror, Napoleão e volta dos Bourbon, depois Napoleão 3º. E, de fato, antes que a França se tornasse republicana, passou-se um século, enquanto o pensamento inglês do século 17 e 18 produziu uma monarquia com uma Magna Carta, produziu os EUA. Não estou inventando nada. Hannah Arendt foi a primeira a dizer que a verdadeira revolução do século 18 foi a americana, não a francesa.
Eu estava pensando nela enquanto você falava sobre o caráter de um povo. O livro Eichmann em Jerusalém deu a dimensão humana, banal, de um facínora, e, ao contrário da crítica sionista feita à época, alargou a dimensão do mal.
Ah, é um texto crucial, inclusive por causa do conceito de banalidade do mal. A razão pela qual certamente esse livro produziu os efeitos que produziu nem tanto está no fato de ela mostrar que Eichmann era um qualquer, porque era, mas porque mostrava que, no fundo, qualquer um é capaz de entrar num funcionamento em que se transformaria num Eichmann. Essa é a coisa que verdadeiramente bate e dói. Minha tese de doutorado, que está trancada há mais de dez anos, porque eu quero fazer uma revisão – ela está traduzida em inglês por um americano, já até recebi um dinheiro que um dia eles vão me pedir de volta [risos], – é sobre isso. Chama-se A Paixão da Instrumentalidade. Está dividida em duas partes. A primeira é uma leitura sobre o funcionamento dos Einsatzgruppen, que eram grupos de extermínio nazistas formados por pessoas quaisquer. Não eram os SS. Era uma espécie de polícia civil que funcionava como grupo de extermínio, especialmente na Polônia. Faço uma leitura disso a partir de uma série de aportes da psicologia social americana, sobretudo estudos sobre a obediência. E a segunda parte mostra como isso funciona na vida cotidiana das pessoas. Mas o fundo da tese é o seguinte: é relativamente fácil se deixar levar, abdicar do exercício da subjetividade, que é um exercício eminentemente cansativo. Ser um indivíduo é um negócio complicado, pesado. E há uma tendência perigosa de se renunciar à individualidade e de se tornar um instrumento de um funcionamento coletivo.
Existe uma culpa coletiva?
Acho que sim. É possível que sim. Acho que existem culpas coletivas e, provavelmente, nos grupos nacionais, também existam. Porque existem culpas que estão, de alguma forma, inscritas na cultura. É sempre um pouco perigoso dizer isso. Eu não sou culpado pelo fascismo italiano. Até a história da minha família me livra desse peso. Mas, por outro lado, não me sinto assim tão italiano... Não é uma resposta simples. Mas como chegamos aqui?
Falávamos dos dois iluminismos.
Sim, fizemos essa excursão e, depois, eu disse que não tenho nenhuma simpatia pelo conceito de nação em geral, pelo nacionalismo, porque me parece o contrário do discurso moderno. Aliás, o individualismo moderno tem origem no cristianismo. Louis Dumont demonstra isso muito bem.
Porque você faz a escolha, não é escolhido.
Claro, é uma relação de Deus com cada um individualmente, independentemente do grupo ao qual o sujeito pertença, inclusive o grupo familiar. É uma relação de foro íntimo. E porque é uma relação na qual o fato de pertencer a uma raça, nação ou o que seja é indiferente.
Existe um caráter brasileiro?
Eu tenho uma implicância, não com o conjunto da obra, mas com algumas coisas do Roberto DaMatta. Acho que ele tem leituras certas do Carnaval etc. Mas não gosto da complacência indentificatória que consiste em dizer: “Sou brasileiro porque gosto de samba e futebol”. Isso eu acho horrível. Um dos perigos desse tipo de definição é que cria um grande momento de prazer coletivo. “Ah, nós somos brasileiros, malandros, todos à venda, gostamos de jeitinho...”
E, se não podemos convencer pelo argumento, vai pela nossa sedução...
Exatamente. Ou então se diz: “Não gostamos de conflito”. Isso é o que tem de pior na tentativa de obliterar nossa história subjetiva e coletiva por meio de uma visão muito fácil de nós mesmos. Veja a frase “O Brasil não é para principiantes”. Isso supõe que a nossa malandragem nos torna especiais e só interpretáveis por especialistas. Pelo contrário: o Brasil é para amadores e principiantes. Porque pagar e corromper é muito fácil. O difícil é construir uma coletividade em que haja leis, institucionalidade. O difícil é ser moral. Ser imoral é que é para principiantes. A malandragem é uma conduta moral de uma criança de 9 anos. O difícil é crescer. Governar pagando o cara para votar comigo é que é amador. O profissional é construir um discurso que convença, é falar com o outro. É claro que o brasileiro não é só isso. A contraparte do jeitinho é o recurso ao foro íntimo acima da convenção, o que é altamente moral.
Vê algum traço particular de nossa formação histórica refletido no nosso caráter?
Isso sempre é tão difícil! Há uma coisa que pode ganhar uma leitura até ufanista, mas que pode ser um problema. O Brasil, por não ter conquistado a independência na ponta da faca, manteve uma espécie de – vou usar uma expressão que meus colegas vão achar completamente ridícula – "complexo de inferioridade" permanente em relação às metrópoles culturais, o que eu acho injustificado e nocivo.
Não há quem ignore a essência do mensalão, para usar uma palavra que reúne toda a bandalheira. Não obstante, as pesquisas indicam, hoje ao menos, que Lula se reelege. Em que medida, como povo, estaríamos aceitando isso tudo e dizendo: “Essas coisas são permitidas”?
A permanência da confiança na pessoa do Lula certamente tem muitas outras explicações possíveis, inclusive a sedução exercida pela idéia de que uma pessoa de origem humilde pudesse chegar no poder. Coisa que, nos EUA, é banal...
... no Brasil, é banal. Basta ver a origem de Deodoro da Fonseca ou de Floriano Peixoto...
Ah, sim, foi na República Velha, que é, diga-se de passagem, acho eu, o grande momento brasileiro. O grupo que chegou [o PT] ao poder achou, – coisa que, na história dos partidos de esquerda, é bastante comum, – que ia governar no interesse do partido, não no interesse da coletividade nacional. Ou seja, confundiu o partido com o “Bem”. Como eu disse antes que acho que a coletividade é a raiz do mal, você sabe o que acho disso. Por que nos indignamos pouco? Porque a história brasileira fornece pouquíssimos exemplos de um governo que tivesse verdadeiramente um interesse pela coisa pública, exceção feita a figuras da República Velha, algumas um pouco exaltadas, como Floriano, que cortava algumas cabeças aqui e ali [risos].
Lima Barreto que o diga... [risos]
Mas, independentemente disso, havia figuras que perseguiam o que eles imaginavam que fosse o interesse republicano. Infelizmente, uma República um pouquinho deificada. Isso comprova o que a gente dizia: a influência do Iluminismo francês – e, claro, do Positivismo. Não era uma República como essa entidade mal definida que resulta do funcionamento entre indivíduos, que é o ponto de vista escocês e inglês. Mas, ao menos, houve momentos em que a noção de interesse público era clara. O Brasil teve pouquíssimos exemplos, desde essa época, de um governo pelo bem republicano. A idéia de uma coisa pública é, de fato, bastante ausente na vida cotidiana da gente aqui. Veja uma coisa espantosa. O cara é dono de um café, um bar, que tem determinadas cores. Então ele se dá o direito de pintar um pedaço da calçada com as cores do seu empreendimento. As ruas viram uma porcaria. A idéia da coisa pública não é forte e espontânea entre nós. Acho que isso faz com que um grupo que governou apenas no interesse do partido, fundamentado na própria reeleição, constitua um escândalo mitigado.
Você falava da República Velha, eu estava aqui pensando que é esse o período mais satanizado pelo marxismo brasileiro, que, curiosamente, vê com bons olhos um presidente parafascista como Getúlio – ao menos entre 1937 e 1945. E se glamuriza a República Nova, a partir de 1930, que é marcada pelo putschismo. Que estranha sabedoria é essa que valoriza o intervencionismo de grupos que tomam o poder de assalto, que impõem a sua agenda, que sufocam a oposição?
O rito histórico da modernização do Brasil fez com que o marxismo brasileiro, naquela época, apostasse numa aceleração, ainda que passando por um processo parafascista. Essa é uma armadilha na qual muita gente caiu, inclusive na Alemanha e na Itália. Mussolini se dizia um socialista antes de inventar o fascismo. Ele se considerava, sem dúvida, a expressão das classes populares.
Há um fenômeno hoje no mundo que é o terrorismo. Ele é a forma virulenta de uma frustração?
Em particular, o terrorismo suicida é sempre a expressão de uma contradição interna – além, claro, de uma contradição externa. Mas isso é até banal. Porque o suicida, além de matar inocentes, se anula, se suprime. Essa decisão de se suprimir é uma maneira de eliminar uma contradição insuportável. Ao se abolir, um terrorista suicida busca abolir uma contradição entre os valores pelos quais eventualmente ele luta e a presença nele próprio dos valores contra os quais luta. Os terroristas de hoje são seres profundamente divididos entre a sedução da cultura ocidental e aquela pela qual morrem. A sedução ocidental não é apenas a do McDonald’s, do I-pod, mas também a de uma cultura que está disposta a reconhecer como sujeito qualquer um. O lado suicida do terrorismo atual é a chave para entender o que está acontecendo. E o que está acontecendo é a progressiva conquista do mundo islâmico pela cultura ocidental.
Seria uma resistência a uma ocidentalização do Islã?
Acho que sim. Os suicidas provam o sucesso dessa ocidentalização. Desse ponto de vista, eu sou bastante otimista. Otimista e com uma certa tendência ao laissez-faire, ou seja, à idéia de que nenhuma intervenção militar terá, como a do Iraque, a longo prazo, o mesmo poder de fogo da expansão natural de uma cultura universalista, ou seja, da cultura ocidental. E esse seu poder é inédito na história: a gente esquece, mas, por exemplo, na cultura romana ou grega, o conceito de “humanidade” não existe. Há os gregos, os bárbaros, os romanos, os não-romanos, mas “humanidade” é uma invenção cristã.
A cultura ocidental não abre mão de seus valores muito facilmente?
Ah, bom, há uma coisa que me apavora um pouco. Ela vive como culpada: culpada de estar desrespeitando a especificidade do outro, de estar invadindo, transformando a realidade cultural do outro. Claro, pensa-se nos momentos em que ela foi colonizadora, violentamente expansionista etc. Por ser universalista, ela tem a tendência de esquecer que é uma cultura, não o “grau zero” da cultura. E por que isso é um problema? Porque, quando há uma luta, a gente pode e deve, sem dúvida, considerar quais são as razões que fazem com que outro tente nos matar e tal. Mas há momentos em que é preciso saber de que lado a gente está. É preciso saber quais são os valores que importam para você. E nós, pela própria característica da cultura ocidental, temos uma grande dificuldade de fazer isso."
***
Nenhum comentário:
Postar um comentário