Brasil, o país do presente?
Jaime Pinsky Historiador e editor, doutor e livre docente pela USP, professor titular aposentado da Unicamp, autor de O Brasil tem futuro?, entre outros livros
Um colega historiador costuma dizer que o diálogo entre economistas e historiadores é sempre muito tranqüilo, sem choques, uma vez que trabalham com objetos diferentes. Enquanto nós, dizia ele, nos contentamos em profetizar sobre o passado — e, às vezes, acertamos —, os economistas especulam sobre o futuro — e invariavelmente erram. Quem imaginaria, há poucos anos, que o dólar despencaria dessa forma em relação ao real e que nossos bancos de varejo seriam mais seguros (e já nem estou falando de lucratividade) do que o Citi ou o UBS? Lembro-me da informação que corria solta há alguns anos: a dívida externa do Brasil era “impagável”; ao que se sabe, ela virou pó. Isso tudo para não falar do pânico gerado em 2002, especialmente na área financeira, pela então provável eleição de Lula; hoje, ninguém ousa levantar uma palavra contra ele, principalmente num círculo de banqueiros. Assim, diz o bom senso que exercícios de futurologia só têm sentido se feitos para o longo prazo: pelo menos não estaremos vivos para colher os louros... do fracasso. Como amante de riscos, contudo, ousarei um pouco mais do que o bom senso recomenda. Começo discordando daqueles que querem pintar nossa esperança de cores ingênuas e ufanistas, baseando-se na retomada da nossa suposta vocação para exportar produtos como pau-brasil, açúcar, café, suco de laranja, minério e, dentro de alguns anos, dizem, petróleo. Isso bastaria, dizem, para darmos o grande salto e transformar esta terra na primeira potência tropical. Penso em grandes produtores de petróleo como a Nigéria, a Arábia Saudita, o Irã, a Venezuela e, mesmo com lentes de aumento, não consigo visualizar nenhuma potência de Primeiro Mundo entre eles; por outro lado, sabemos do alto índice de desenvolvimento do Japão, ilha inóspita incrustada no Pacífico, e do crescimento vertiginoso em países ainda há pouco insuspeitados como a Coréia, politicamente dividida e sem grandes presentes da natureza. Lembro-me, então, recorrendo à História, de que, no início do século 16, Portugal parecia ser uma potência inalcançável: estrategicamente localizada, possuía uma frota moderna, dinheiro para contratar excelentes homens do mar italianos, uma burguesia comercial em ponto de bala e até um sistema financeiro bastante desenvolvido para a época, além de terras na África, Índia e América. O uso da inquisição, a serviço do rei e da nobreza, para esmagar os mercadores (como ensina Antonio José Saraiva em Inquisição e cristãos novos), a corrupção na venda dos direitos de comando das embarcações e a burocratização e centralização administrativas — que tolhiam a iniciativa dos empreendedores mais corajosos — conseguiram impedir o desenvolvimento das forças produtivas e condenar o país a uma pasmaceira que o acompanhou por séculos. De fato, há uma conjunção de fatores econômicos favoráveis a que o Brasil chegue a uma mudança histórica, e todos nós torcemos para que isso aconteça. Mas parece claro, que eles não são suficientes para já nos sentirmos como membros de um eventual G-9. Para isso, ainda falta muito. É verdade que tentamos encontrar as razões que impedem nosso país de deslanchar e o mantêm pobre e desigual, distante do ideal que para ele traçamos. E ficamos sem entender como é que um povo que consideramos tão esperto e cordial, vivendo numa terra que achamos tão generosa, não chegou ainda ao tão ansiado primeiro mundo. Muitos de nós nos sentimos verdadeiros cidadãos do primeiro mundo quando viajamos para Miami ou Nova York, mesmo que seja só para usar a máscara do Mickey ou ver um desses musicais que só caipiras americanos ainda assistem. Demonstrar nossa suposta cidadania universal é muito importante, pois mostra que estamos descolados do Brasil terceiro-mundista, que optamos pelo progresso e pela globalização, que nada temos a ver com “aquela gente”, sejam elas os vizinhos miseráveis ou as 75 mil prostitutas brasileiras que trabalham na Europa atualmente. Assim, por meio de uma ginástica mental bastante complexa, situamo-nos no primeiro mundo como pessoa física, embora a entidade nacional e o solo em que pisamos ainda estejam patinando no terceiro. Isso nos exime da responsabilidade sobre os desmandos dos governantes, a inoperância da polícia, os sistemas previdenciários (temos planos privados de aposentadoria), de saúde (temos planos privados também aqui) e da educação (pagamos boas escolas privadas para nossos filhos) e o transporte coletivo (temos carro, por vezes até motorista particular). Somos esquizofrênicos sociais, divididos em nossa auto-imagem generosa e primeiro-mundista e nossa prática egoísta e autoritária. Enquanto nosso espelho nos mostra bons e cordiais, nosso comportamento nos revela preconceituosos e agressivos. Não assumimos a responsabilidade de nossas ações e atribuímos aos outros a culpa pelo nosso fracasso. Se não tivéssemos sido objeto do saque colonial… Se fossem os holandeses e não os portugueses... Se o clima fosse mais frio, nossas avós fariam conservas, o que aumentaria o valor agregado de nossos produtos agrícolas, já que exportaríamos doce de graviola e goiaba, não a fruta a granel... Se, se, se. A verdade é que não assumimos ainda as responsabilidades decorrentes a quem pertence a uma sociedade complexa, baseada em contratos sociais que só funcionam se forem cumpridos por todos, o que inclui, é claro, responsabilidade social, produto escasso por estas bandas. O fato de o Estado ter precedido a nação no Brasil talvez seja o motivo principal de haver um divórcio tão profundo entre governo e sociedade. Mas esse pode ser apenas um álibi. Volto, pois, à história. Fomos o último país ocidental a eliminar a instituição da escravidão. Muita tinta foi gasta para entender o motivo disso ter ocorrido (interesses do latifúndio, pressão dos comerciantes de escravos, etc.), mas agora se sabe que a escravidão não acabou antes porque grande parte da população brasileira — e não só os grandes proprietários rurais — não queria. E ela não queria que isso acontecesse porque a escravidão era confortável, as pessoas estavam acostumadas com o escravo de ganho, o auxiliar doméstico, a escrava sexual. Esse processo pode voltar a acontecer? Não seria muito confortável para muita gente continuar a viver num país de terceiro mundo, desde que seja no topo da escala social? Nesse caso o petróleo abundante nos deixaria mais perto de nos tornarmos uma Suécia, ou uma Arábia Saudita? Meu ponto é que conjuntura favorável sem vontade política não muda a história. Queremos, de fato, educação, saúde, justiça e segurança para todos? Afinal, apesar de alguns transtornos, nós nos defendemos com escolas particulares, com planos de saúde privados, com bons advogados e com grades, muros, segurança privada e carros blindados. A violência, a falta de justiça, de saúde e de educação formal atinge, profundamente, o povo, e muito menos a nós. Se quiséssemos encontrar soluções, já o teríamos feito. Ou não? Será que a escolarização pública a que são submetidos nossos jovens é igual àquela que atingia a classe média há poucas décadas? Minha geração no Estadão, o Colégio do Estado, em Sorocaba (como o Pedro II, no Rio, o Roosevelt, em São Paulo), educou prefeitos, juízes, promotores, muitos professores universitários, jornalistas, poetas. Ainda estudantes, no interior de São Paulo, fundamos e escrevemos em dois jornais, União & Cultura e Luta Estudantil. Com raras exceções, os jovens que terminam o ensino médio de hoje, na escola pública, mal conseguem preencher uma ficha de visitantes na entrada do prédio em que trabalham como porteiros. Que ensino é esse? Ou o ensino é exatamente para formar esse tipo de força de trabalho? A minha pergunta é: nós queremos, de fato, mudar? Se quiséssemos mudar a educação, não faríamos a distribuição de livros, supostamente bons, para serem utilizados por mestres, seguramente mal preparados? Mas, como me respondeu um ministro da Educação, para quem coloquei a questão, “dar livros para todas as crianças dá mais resultado eleitoral, capilaridade, do que requalificar professores”. Assim se mantém a tradicional e incurável tradição clientelista, que não se desmonta, suba quem subir ao governo. O Brasil tem futuro? Tem, sim, e é o futuro que decidirmos dar a ele. Sem determinismos geográficos ou econômicos. Sonhar grande é bom, mas insuficiente. Há que construir esse sonho, pedra a pedra. Mais difícil do que extrair petróleo e gás do fundo do mar será construir uma nação mais justa, sem o populismo, que tem servido para escamotear as desigualdades por meio de esmolas concedidas pelo poder. Cabe a nós decidir se queremos nos lançar nessa empreitada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário