"O caldeirão dos demônios" - Maurício Dias*
Reunido com um grupo de intelectuais em Brasília, na quinta-feira 22, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, fez uma análise curta e expressiva do processo político em marcha no continente. Chávez usou o diabo como metáfora da principal mudança ocorrida nos últimos dez anos na América Latina. O ponto de inflexão foi marcado, para ele, pela primeira conferência de cúpula da América Latina, Europa e Caribe, realizada no Brasil. Chávez era presidente recém-eleito. O Brasil era governado por Fernando Henrique.
Estavam todos sentados ao redor de uma mesa “muito grande”, na lembrança de Chávez. O cubano Fidel Castro falou e o venezuelano usou a palavra logo depois. Os dois mostraram muita afinidade. Fidel, através do chanceler cubano, Felipe Pérez Roque, mandou um bilhete que Chávez mantém guardado e freqüentemente cita. “Fidel”, contou o presidente venezuelano, “escribió de su puño y letra”:
“Chávez! Siento que ya no soy el único diablo”.
De lá para cá, o “diabo” multiplicou-se. Além de ter aparecido como militar (Chávez) na Venezuela, tomou forma de operário (Lula) no Brasil, encarnou em um índio (Evo) na Bolívia e, na Nicaraguá, surgiu como guerrilheiro (Ortega). A última aparição, no Paraguai, é mais surpreendente: tomou o corpo de um bispo (Lugo).
Não há exorcismo político capaz de dar jeito nisso. Há uma unidade nessa proliferação de “diabos” neste momento. O processo sucede uma fase longa, em que a sociedade parecia alijada do processo. O número imenso de excluídos parecia condenado à margem da história. Após as frustradas iniciativas de rebeliões armadas, floresceram os regimes militares e, posteriormente, governos civis, tímidos e frágeis, que davam continuidade a um cenário criado pelas ditaduras: a paz dos cemitérios.
Há quem acredite que tudo isso seja um grande retrocesso. Uma involução. Acreditam que, logo, logo, as coisas voltarão aos eixos. Mas parece difícil bloquear um processo enraizado nos graves problemas sociais do Brasil, da Venezuela, do Paraguai, da Nicarágua, da Bolívia e outros. As circunstâncias sociais dramáticas do continente são o fermento do caldeirão do diabo. Nessas circunstâncias, o processo pode até mesmo ser freado. Temporariamente. Ressurgirá sempre, mais à frente, encarnado em homens e mulheres que reagirão, talvez de forma mais agressiva, ao precário contrato social edificado sobre a miséria de milhões de pessoas.
*Maurício Dias é Diretor-Adjunto da Carta Capital
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