JOÃO PEREIRA COUTINHO
Capitalista sofre, camaradas
Gates não precisava doar parte da fortuna para saldar a sua dívida com a humanidade
SEMPRE QUE vejo alguém marchar contra o "capitalismo", pergunto honestamente se os manifestantes conhecem um "capitalista" de verdade.
A pergunta pode parecer ingênua. Não é, leitores. Marx escreveu abundantemente sobre a situação do proletariado no século 19 e, no entanto, o conhecimento real de Marx sobre as classes trabalhadoras era mínimo, para não dizer nulo.
O mesmo no século 21. Os manifestantes marcham contra o "capitalismo" e acreditam na imagem caricatural do capitalista, sentado sobre as costas do trabalhador e bebendo o suor deste com maléfico prazer. Eis o clichê das passeatas primitivas: as massas trabalham; o capitalista vive do trabalho alheio, de preferência brandindo o chicote.
Nada mais longe da verdade. Conheço vários capitalistas com certo grau de intimidade. E em nenhum momento invejo ou critico a vida dessa gente. Acordam a horas impróprias. Deitam-se a horas obscenas. São os primeiros a chegar à empresa e, normalmente, os últimos a partir.
Envelhecem prematuramente. E, envelhecidos, lamentam o tempo que perderam em reuniões inúteis, viagens inúteis e contatos com inúteis. O coração começa a ceder a partir dos 40. O primeiro infarto vem aos 45. A vida familiar é uma piada (de mau gosto).
E a competição própria do "métier" arruina o que existe de mais precioso na vida de um ser humano: a possibilidade de nos entregarmos ao ócio, à criação e ao prazer.
Como diria Albert Cossery, o úl-timo dândi, que morreu na semana passada em Paris e que construiu uma obra sublime ao ritmo de uma frase por dia, não existe nada mais triste do que a presença da beleza no mundo e a ausência de olhos para desfrutá-la.
Isso é vida que se inveje? Não creio. Mas é vida que se agradece. Por cada ruga, cabelo branco ou miocárdio pronto a explodir, existe o contributo objetivo do capitalista para a vida anônima de cada um. Não falo da criação de emprego e de riqueza. Falo dos nossos gestos mais ridículos do dia-a-dia: quando ligamos o carro, dispensando o cavalo; quando ligamos a luz, dispensando a vela lamparina; quando ligamos a internet, dispensando o pombo-correio, há sempre a marca de um capitalista por trás, que esteve disposto a bancar uma idéia e a aumentar os nossos confortos.
Por isso, levanto o meu copo no momento da despedida: três décadas depois, Bill Gates abandona a chefia da Microsoft para se dedicar a obras de caridade e à luta contra a malária. O gesto é nobre, sim: quem, em juízo perfeito, trocaria o egoís- mo da riqueza pelo altruísmo de partilhá-la?
Mas Gates não precisava doar parte da fortuna aos desvalidos da Terra para saldar a sua dívida com a humanidade. A dívida foi saldada quando Bill Gates fez o que melhor soube: democratizar o computador, transformando irreconhecivelmente a vida de cada um.
Como? Primeiro, ao colocar computadores baratos nas casas do mundo. E, depois, ao fornecer um software simples e de lingua- gem praticamente universal, que transformou os nossos hábitos de trabalho.
No próximo século, quando se escrever a história deste, Bill Gates será relembrado como um visionário. Alguns críticos não toleram essa visão generosa e acusam Gates de práticas desonestas: o homem era um inimigo da concorrência; o homem não respeitava a propriedade intelectual alheia; o homem roubava idéias dos adversários que depois apresentava como suas.
Entendo os críticos. Mas é difí- cil acreditar neles. Existe na informática uma fluidez autoral que não é comparável com outras áreas do conhecimento e da criatividade humanas. Quem inventou o "mouse"? Quem inventou a "interface gráfica"?
Existem dezenas de candidatos ao lugar, e é provável que outras centenas, ou milhares, tenham dado o seu contributo numa cadeia interminável. Mas só um ocupa o topo do pódio na capacidade para juntar idéias dispersas e oferecer um sistema operativo comum.
O ódio a Bill Gates se explica com uma palavra bem arcaica e bem humana: inveja. A exata inveja que não tolera a história bem real do Tesouro norte-americano, que uns anos atrás se viu obrigado a alterar os impressos de declaração do imposto de renda porque não havia espaço para os dígitos da fortuna de Gates.
Mas não há que ter inveja, camaradas. Gates é um capitalista. E, como qualquer capitalista, ele merece a nossa pena e a nossa gratidão.
Capitalista sofre, camaradas
Gates não precisava doar parte da fortuna para saldar a sua dívida com a humanidade
SEMPRE QUE vejo alguém marchar contra o "capitalismo", pergunto honestamente se os manifestantes conhecem um "capitalista" de verdade.
A pergunta pode parecer ingênua. Não é, leitores. Marx escreveu abundantemente sobre a situação do proletariado no século 19 e, no entanto, o conhecimento real de Marx sobre as classes trabalhadoras era mínimo, para não dizer nulo.
O mesmo no século 21. Os manifestantes marcham contra o "capitalismo" e acreditam na imagem caricatural do capitalista, sentado sobre as costas do trabalhador e bebendo o suor deste com maléfico prazer. Eis o clichê das passeatas primitivas: as massas trabalham; o capitalista vive do trabalho alheio, de preferência brandindo o chicote.
Nada mais longe da verdade. Conheço vários capitalistas com certo grau de intimidade. E em nenhum momento invejo ou critico a vida dessa gente. Acordam a horas impróprias. Deitam-se a horas obscenas. São os primeiros a chegar à empresa e, normalmente, os últimos a partir.
Envelhecem prematuramente. E, envelhecidos, lamentam o tempo que perderam em reuniões inúteis, viagens inúteis e contatos com inúteis. O coração começa a ceder a partir dos 40. O primeiro infarto vem aos 45. A vida familiar é uma piada (de mau gosto).
E a competição própria do "métier" arruina o que existe de mais precioso na vida de um ser humano: a possibilidade de nos entregarmos ao ócio, à criação e ao prazer.
Como diria Albert Cossery, o úl-timo dândi, que morreu na semana passada em Paris e que construiu uma obra sublime ao ritmo de uma frase por dia, não existe nada mais triste do que a presença da beleza no mundo e a ausência de olhos para desfrutá-la.
Isso é vida que se inveje? Não creio. Mas é vida que se agradece. Por cada ruga, cabelo branco ou miocárdio pronto a explodir, existe o contributo objetivo do capitalista para a vida anônima de cada um. Não falo da criação de emprego e de riqueza. Falo dos nossos gestos mais ridículos do dia-a-dia: quando ligamos o carro, dispensando o cavalo; quando ligamos a luz, dispensando a vela lamparina; quando ligamos a internet, dispensando o pombo-correio, há sempre a marca de um capitalista por trás, que esteve disposto a bancar uma idéia e a aumentar os nossos confortos.
Por isso, levanto o meu copo no momento da despedida: três décadas depois, Bill Gates abandona a chefia da Microsoft para se dedicar a obras de caridade e à luta contra a malária. O gesto é nobre, sim: quem, em juízo perfeito, trocaria o egoís- mo da riqueza pelo altruísmo de partilhá-la?
Mas Gates não precisava doar parte da fortuna aos desvalidos da Terra para saldar a sua dívida com a humanidade. A dívida foi saldada quando Bill Gates fez o que melhor soube: democratizar o computador, transformando irreconhecivelmente a vida de cada um.
Como? Primeiro, ao colocar computadores baratos nas casas do mundo. E, depois, ao fornecer um software simples e de lingua- gem praticamente universal, que transformou os nossos hábitos de trabalho.
No próximo século, quando se escrever a história deste, Bill Gates será relembrado como um visionário. Alguns críticos não toleram essa visão generosa e acusam Gates de práticas desonestas: o homem era um inimigo da concorrência; o homem não respeitava a propriedade intelectual alheia; o homem roubava idéias dos adversários que depois apresentava como suas.
Entendo os críticos. Mas é difí- cil acreditar neles. Existe na informática uma fluidez autoral que não é comparável com outras áreas do conhecimento e da criatividade humanas. Quem inventou o "mouse"? Quem inventou a "interface gráfica"?
Existem dezenas de candidatos ao lugar, e é provável que outras centenas, ou milhares, tenham dado o seu contributo numa cadeia interminável. Mas só um ocupa o topo do pódio na capacidade para juntar idéias dispersas e oferecer um sistema operativo comum.
O ódio a Bill Gates se explica com uma palavra bem arcaica e bem humana: inveja. A exata inveja que não tolera a história bem real do Tesouro norte-americano, que uns anos atrás se viu obrigado a alterar os impressos de declaração do imposto de renda porque não havia espaço para os dígitos da fortuna de Gates.
Mas não há que ter inveja, camaradas. Gates é um capitalista. E, como qualquer capitalista, ele merece a nossa pena e a nossa gratidão.
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