A má notícia: Eu, você, o pessoal aqui do blog, boa parte da população mundial, além do tio que vende churros na saída da faculdade (conhecido invariavelmente como “O Tio do Churros”), perdemos o início do concerto mais longo da história humana, iniciado em 04 de setembro de 2001, na Igreja de St. Burchardi (São Burchardo), em Halberstadt, na antiga Alemanha Oriental.
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A boa Notícia é que a gente pode se programar para dar uma passadinha lá qualquer hora, pois o concerto continua acontecendo, e ainda vai demorar um longo tempo para ser encerrado.
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Explicando: Em 1985 o compositor avant-garde John Cage (1912-1992) compôs uma peça para piano, com 20 minutos de duração, e, em 1987 verteu-a para o órgão, culminando em uma partitura de oito páginas, denominada Organ2 ASLSP, sendo que a sigla, segundo o compositor, significava As slow as possible, ou seja, o mais lento possível.
Mas como interpretar a orientação para que a peça fosse tocada da forma mais lenta possível ? Aliás a pergunta é outra: quão lento é o mais lento possível ? Pense bem.
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O organista Gerd Zacher, que sugeriu a Cage a transposição para o órgão tocava a música em 29 minutos. Com o surgimento dos cd´s e um bom conhecimento da aplicação da regra de três, foi possível também ampliar a duração do concerto para 71 minutos, bastando aumentar proporcionalmente os intervalos entre as trocas de notas e acordes.
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Mas 71 minutos é o mais lento possível ? Para a organista Diane Luchesi não. Em fevereiro de 2009, na Towson University em Maryland, ela tocou a peça durante 14 horas e 56 minutos, sendo a maior performance da obra empreendida por um ser humano até o momento.
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Mas vamos lá: 14, 15... 100 horas ?!? Afinal, que intervalo de tempo pode ser considerado como o mais lento possível ?
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Para resolver essa questão, em 1997, um seminário em Trossingen, envolvendo músicos, filósofos e “cagemaníacos” analisou as múltiplas teorias sobre o que seria o mais lento possível. Que tal ficarmos nos 29 minutos da conhecida performance de Gerd Zacher? Disseram alguns. Que tal o tempo de um cd? Por que não o tempo de uma vida humana, ou seja, mais ou menos 66 anos ? Por que não o tempo de vida do instrumento?
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Mas um órgão de tubos, devidamente cuidado, não tem prazo de duração. Falaram até em eternidade. O concerto poderia durar infinitamente. E aí ?
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No fim das contas, decidiu-se que o concerto deveria durar 639 anos. A explicação é muito simples. Em 1361, Nicolas Faber construiu um órgão para a Igreja de São Burchardo que é considerado por alguns historiadores o primeiro órgão “moderno” da história, cuja distribuição de doze notas por oitava é utilizada até hoje. Daí, subtraiu-se o ano 2000 do ano 1361, para se chegar aos 639 anos. Simples assim.
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Quanto à Igrejinha, não existia mais, o órgão então nem se fala. Mas tudo bem, pois a peça musical começava com uma pausa, que na escala musical de 639 anos, duraria 17 meses. Foi o suficiente para o levantamento de fundos para a reconstrução do templo e de um órgão que ao menos tivesse os tubos das três primeiras notas, a saber, um sol sustenido, um si e um sol sustenido agudo.
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Como a empreitada foi orçada em cerca de 500 mil euros, coube a Michael Bentzle, diretor-gerente da John Cage Orgel Stiftung (ou Fundação Organística John Cage), nas suas palavras, encontrar uma seguradora “tão segura de si que espere durar 639 anos”, e um Banco “que realmente confie no futuro”.
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Além disso, criou-se uma forma de se obter donativos de particulares. Por mil euros, é possível “comprar” o patronato de um ano e uma placa de metal com o seu nome (ou de sua família) será afixada na Igreja. No site oficial do Projeto pode-se verificar que a idéia deu certo. Os anos 2000 a 2075 já foram comprados. Outros compradores preferiram adquirir anos mais adiantados no tempo, sabe-se lá o porquê. Deve ser o humor alemão!! Maren Taubert e Hans Taubert, por exemplo, compraram o ano de 2636. De qualquer forma, para os interessados ainda existem vários anos disponíveis, como a série que vai de 2146 a 2210, dentre outras.
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Dia 04/09/2001 (aniversário de nascimento do compositor) às 9h e 36 minutos (que lido ao contrário gera o número 639), foram ligados os foles de um pequeno dispositivo. Após um ano e meio vieram as três primeiras notas, acima citadas, e, desde então o Orgel soa ininterruptamente. As teclas são mantidas abaixadas por pequenos sacos de areia. Para a alegria dos moradores próximos à Igreja, as emissões sonoras são abafadas por um cubo de acrílico que fica ao redor do instrumento.
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Até fevereiro de 2009, sete mudanças de notas ocorreram. A próxima está prevista para Julho de 2010.
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2011 promete ser um ano frenético com nada mais, nada menos que duas mudanças de acordes, nos dias 05 de fevereiro e cinco de agosto. Entre outubro de 2013 e setembro de 2020, não ocorrerão mudanças de acordes, mas há previsões de alterações importantes, como um cacofônico fortíssimo daqui a uns duzentos anos.
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Intervalo ? Sim, há um half time previsto para o ano 2319, avise seus heptanetos.
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Entrementes a cidade tem virado ponto de peregrinação, para os amantes da música clássica moderna, em geral. Os Burgomestres têm ficado felizes com o aporte de cerca de dez mil pessoas por ano que vêm conhecer a Igreja, o órgão (que segundo consta terminou de ser construído neste ano), ouvir um pedacinho da monumental peça e dar uma movimentada na economia local.
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O concerto está previsto para terminar em 04 de setembro de 2640... coisa de doido ? Ouçamos as palavras de John Cage: “Se meu trabalho está sendo aceito, eu tenho de movê-lo para um ponto onde ele não seja”.
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Em tempo, segundo entrevista para a Deutsche Welle Brasil, Bentzle explica que o Projeto ASLSP também é um protesto contra o andamento vertiginoso da vida moderna. “É preciso ultrapassar o aqui e agora”, afirma. E acrescenta: “Tudo o que é de acordo com a razão está há muito tempo destruído”.
Fontes de Consulta:
http://www.john-cage.halberstadt.de/new/index.php?seite=dasprojekt&l=e
http://www.timesonline.co.uk/tol/sport/football/european_football/article785553.ece
http://www.lazermusica.com/blog/2009/02/17/organ-2-o-concerto-mais-longo-da-historia/
http://www.dw-world.de/dw/article/0,,829354,00.html